quarta-feira, julho 31

o cilindro branco.

Há alguns anos, talvez oito ou nove, eu tinha sido convidada a ir ao mesmo lugar onde estão hoje. Havia levado um livro que estava lendo pela segunda vez — a primeira vez tinha sido ainda na escola na época do fundamental, emprestado da biblioteca — e ficara horas ao redor da piscina lendo sobre castelos, construtores e disputas. Nesse mesmo dia, durante a manhã, havíamos tido momentos que, hoje, vejo como gostosos: rodeamos o pomar todos juntos, nos apresentaram plantas e frutas que hoje não lembro do nome, nos perdemos no meio daqueles metros quadrados como se fossem quilômetros e mais quilômetros de floresta, prontos para serem conhecidos.


Era a sobrinha e neta mais velha (alcunha que ficou comigo durante toda minha infância e adolescência, sendo, provavelmente, apenas um adendo bobo agora) e que fui a única que permitiram subir naquela construção imensa que havia ao lado da casa. É algo que, ainda hoje, não entendo o porquê da existência: era um cilindro enorme, talvez com quase trinta metros, não largo o suficiente pra ser mais forte que o vento e branco; branco ao ponto de doer o olhar. A única forma de subir até o topo era por meio de uma escada fina, com uma proteção risória, que ficava ao lado, protegida do sol da manhã pela sombra do cilindro naquele momento. Eu estava com medo, não vou negar. Não tinha medo de altura, especificamente, mas me haviam alertado inúmeras vezes que lá em cima o vento era mais forte. Além disso, assim como a escada, a proteção não era das melhores: um escorregão bobo poderia fazer com que a descida sob o sol fosse dez vezes mais rápida que a da proteção da sombra. Mas eu era a mais velha e a única que tinha permissão, até então, de ir até lá juntamente com os adultos — que hoje me ouvem e levam a sério, mas que na época só me achavam inteligente por ler demais e tirar notas boas. Então fui. Primeiramente, acompanhada de outros dois que, juro, não lembro quem eram: podia ser facilmente meus tios da mesma forma que também poderia ser meu pai e meu avô. Mas depois eu fiquei sozinha e acho que, juntamente com o fato de estar lendo um livro da minha infância naquele dia — ainda que seu conteúdo não fosse dos mais infantis, mas nunca falei disso com outra pessoa — , me marcou. Eu via o pomar que havia sido encantador pra mim há uns momentos, via a piscina que seria meu abrigo durante toda a tarde; via meus primos, meu irmão, meus pais, tios, avôs, todos andando cada um com seu distinto objetivo pela chácara; via cavalos e a chácara vizinha um pouco mais a frente. E ventava. Ventava muito. Não mentiram ou adicionaram coisa alguma quando comentaram que lá em cima ventava muito. E minha mãe tirou uma foto minha lá. Estava na beirada, bem no lugar que me faria descer mais rápido se eu inventasse de ser paquerada pelo vento, e abri os braços pra ser colocada em um frame que não sei mais onde está.


Hoje a situação é diferente. A chácara nessas férias abrigou meu irmão, meus primos, tios, mas não a mim — que não fui convidada —, nem aos meus pais — que se divorciaram — ou aos meus avôs — esses porque, provavelmente, só não puderam ir. E não me dói pensar no fato de divórcio ou dos meus avôs estarem ficando velhinhos demais pra acompanhar seus netos nessas férias de chácara que nos eram tão preciosas quando crianças. Mas no fato que não fui convidada. Me lembrei que aos poucos fui me afastando de pessoas que, em certo sentido, me são queridas. Pensam diferente, agem diferentes e tem ideais que não considero os melhores, mas são queridas. Estão inseridas em memórias minhas que gosto de relembrar, em momentos meus que gosto de pensar de novo. Me dói porque agora, com ciência de mais coisa e sabendo de quem sou e do que levo comigo, não me parece que terei novas memórias deles para guardar. Estarão lá, no meu passado, guardados quase tão estáticos quanto eu a foto que minha mãe tirou de mim. E eu poderia tentar expor a real eu a eles, talvez o faça, mas me são conhecidos demais — os pensamentos, as atitudes e os ideais — para pensar na hipótese de ser novamente inserida em seus cotidianos. A única coisa que mudaria na falta de convite é que seria proposital.

sexta-feira, maio 17

a vigésima tormenta.


não me sinto pertencente
ou capaz de estar aqui
e nas raras ocasiões em que pareço presente
a presença é rodeada da sensação de ser a pior opção
(quando há a opção da opção).

poderia sentar
ficar quieta
olhar pro nada
pensar naquele nada que é o misto de cinquenta assuntos
sentimentos
sensações diferentes.

poderia ficar sem falar por dias
e só ouvir o mundo
ecoar
e silenciar
ecoar
e silenciar
por horas a fio.

parte de mim parece ter ficado
no limbo em que estávamos
antes de vir pra cá.

eu não me sinto completa
e não é por falta de alguém
algo
alguma coisa
ou seja o que for que possam culpar.

é por falta de mim.
a falta de algo que está
tão inalcançável,
tão inacessível,
que parece nem existir.

ai sou preenchida por vazio
na mais improvável incoerência

preenchida
por
vazio

uma palavra tão pequena, tão minúscula
que não deveria ter poder de preencher coisa alguma.
porém, veja só,
eu também sou pequena
e também me sinto minúscula.

quarta-feira, março 6

a décima nona tormenta.


eu gosto de escrever.

isso não significa que tenha a capacidade de te tocar com verbos bem encaixados em metáforas feitas pela primeira ou vigésima vez;
tampouco que eu saiba exatamente sobre o sujeito que escrevo, ainda que o sujeito da vez seja eu;
também não me impede de compor uma frase específica que martele na sua cabeça por horas até que você a digira;

significa, simplesmente, que sinto o dever de escrever
na mesma intensidade que sinto.

pois tristeza me parece um dia nublado, chuvoso, com relâmpagos, gritos e barulhos oriundos de sabe-se lá onde;
me afeta na profundeza do ser enquanto meu rosto está congelado em uma plenitude de tempos atrás.

felicidade me faz explodir e conversar sozinha pela rua;
saudade eu sinto até do vestido rosa de quando era menina, imagine quando situações mudam;
devaneios me sobram igual fio de cabelo pelo chão de casa, dos mais filosóficos aos mais absurdos;
incômodos, desconfortos, tranquilidades, aconchegos, paz, desencaixes...
não há datilografia que me acompanhe.

gosto de escrever e não significa que eu tenha dom pra conversar com sua alma
ou te fazer sentido
ou apenas te soar bonita

só gosto.
e por isso faço.

quarta-feira, fevereiro 27

a décima oitava tormenta.



me chacoalha por inteiro desde o primeiro beijo:
quando não o corpo,
a alma.

me atinge no âmago do ser
me respalda na base das inseguranças
me abraça na paz e na tormenta
me cura
me balança
se torna a única certeza em meio a fases e fases e fases.

me complementa
aumenta
acalenta
de forma tão natural quanto lhe é analisar em outros pontos de vista.

se tornou o ser mais bonito do mundo
em todas as vezes que me fez admirar
ter orgulho, estar leve, sentir conforto,
te amar.
amar tanto que parecia impossível experienciar qualquer coisa
sem ter a vontade de dividir com você.

me divide em pedacinhos
torna o complicado fácil;
me compreende por inteira
torna a bagunça clara;

se enraíza em solo que jamais imaginei fértil
e cresce em mim
ocupa em mim
semeia em mim.

e vem assim
me sorrindo boba
derreto.

segunda-feira, fevereiro 25

a décima sétima tormenta.

pieces that i could write.

pensamentos.
devaneios.
divagações.
meias conversas.
algo que passou na tela.
uma frase que preencheu meu silêncio.
conclusões sobre histórias nas quais não estou envolvida.
comentários na parada de ônibus.
a forma como te olharam.
o som de algo que me martela por dentro.
o gosto daquela bebida depois de tempos distante.
verbos que, repentinamente, me paralisaram.
implosão sentida até na mais grossa camada de pele.
o sabor quase palatável do desassossego.
a ternura em ter de volta.
aquela incapacidade de diálogo.
toque.
sorrisos.
o "tá tudo bem" enquanto o corpo grita que não.
leveza ao lidar com algo que pesa.
saudade. saudade. saudade.
⠀⠀de tanta coisa que me geraria dois volumes completos.
a ida. a vinda. o sentimento de estar indo.
completa incongruência acerca do que fazer.
o estado de espírito inquieto em quartas feiras.
a tranquilidade da alma lavada em domingo.
hipóteses inusitadas de cenários inexistentes.
© terna tormenta
Maira Gall