quinta-feira, dezembro 7

a terceira tormenta.


Mas quando me permitir te conhecer a sensação foi, no mínimo, esquisita.

Era como se meus olhos estivessem por trás da minha pele e eu te visse de uma dimensão na qual só eu tivesse acesso. Você parecia diferente, quase como uma entidade, um anjo ou algo que não pertencesse. Não pertencesse, sabe? A ninguém, a lugar algum. Fosse por si só; por sua existência, preferências e gostos.

Quando te toquei, foi como se eu fosse a sensação - literalmente, ser a sensação - do toque entre duas partes do meu corpo ao mesmo tempo em que nenhuma delas era minha. O não pertencer soava no meu ouvido como se fosse toda a resposta que eu precisava.

Não pertencia. A ninguém. A lugar algum. Nem mesmo ao próprio corpo.

Quando te ouvi foi quase uma experiência tecnológica: um som robótico que chegasse próximo dos meus tímpanos e sussurrasse:

Não pertenço.

Íntimo, ao mesmo tempo que incomum. Diferente, mas com a sensação de familiaridade mais próxima de sua essência que poderei vivenciar.

Quando tentei entender seus pensamentos foi como dar a chave do carro mais potente à uma criança e dizer: ligue. Vá, corra. Eu tentava correr, mas como poderia se até ligar o carro parecia demais pra mim? E então você me ajudava e ensaiava metáforas sobre embreagem, acelerador, câmbio, freio, retrovisores. A criança em mim, embevecida, bebia suas palavras com uma sede que não parecia ter fim. Quando você achou que eu sabia o suficiente, já não era mais criança. Havia crescido, alcançava os pedais e tinha desenvoltura para controlar - temporariamente (o seu não pertencer sempre ficou claro) - o carro que você me dera. Foi quando me contou dos seus segredos, feitos, causos e paramos no meio da estrada pra tomar café, enquanto outros carros - que você oferecera a outras pessoas - passavam enlouquecidamente querendo sua atenção.

Eu não entendia, pra falar a verdade. Todo o conjunto era bagunçado até mesmo pra mim, que era o seu foco e a pessoa para a qual você queria se fazer entender.

Quando juntava tudo: seus olhos, seu toque, sua voz, seus pensamentos verbalizados, era quase um culto. Sagrado demais, sincero demais para que eu não quisesse estar ali, mesmo que a sensação fosse... Você sabe. Você sentia também.

Porque você queria se fazer entender pra mim por ser eu. E eu queria te entender pra ter controle sobre os outros carros.

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